A acessibilidade digital está deixando de ser apenas uma recomendação ética para se tornar uma exigência legal em várias partes do mundo. Com o avanço das legislações e o aumento da fiscalização, o cenário jurídico está mudando rapidamente, e empresas que não se adaptarem correm o risco de enfrentar sérios problemas legais no futuro.
Os números produzidos em 2024 não deixam dúvidas sobre a gravidade da questão. O relatório da WebAIM Million sobre a acessibilidade das 1.000.000 principais homepages acessadas em 2024 indica 95,9% das páginas analisadas apresentaram falhas de acessibilidade detectadas. Além disso, houve um aumento significativo no número médio de erros de acessibilidade por página, passando de 50 em 2023 para 56,8 em 2024 (um incremento de 13,6%) — o que está correlacionado com o aumento da complexidade das páginas em termos de design de interação.
Início e evolução da Web Content Accessibility Guidelines (WCAG)
A criação e a evolução da WCAG reflete um esforço contínuo de muitos especialistas da área em tornar a internet mais acessível para pessoas com algum tipo deficiência — seja uma deficiência permanente, situacional ou temporária. Desde sua primeira versão publicada em 1999, a WCAG têm servido como um conjunto de diretrizes técnicas que orientam desenvolvedores e designers na criação de produtos digitais inclusivos. A sua importância não se refere somente a sua qualidade técnica: é com base nessas guidelines que a maior parte das leis que incentivam acessibilidade no ambiente digital se apoiam para conseguir criar algo mensurável dentro dos processos jurídicos.
Por ser um conjunto de diretrizes técnicas que existe há mais de duas décadas, a WCAG não é estanque e apresenta diferentes versões ao longo do tempo. Essas diretrizes têm se adaptado a mudanças tecnológicas e sociais, respondendo a desafios emergentes e expandindo sua abrangência para atender a uma variedade maior de necessidades. Aqui, é importante entender um contexto geral de cada uma dessas versões, uma vez que as normas jurídicas atuais se baseiam em versões específicas lançadas.
A WCAG 1.0, lançada pelo World Wide Web Consortium (W3C) em 1999, foi pioneira ao estabelecer os primeiros padrões de acessibilidade digital. Essa versão trouxe um foco inicial em textos alternativos para imagens (alt text), estruturas semânticas básicas e navegação por teclado. Embora inovadora para sua época, a WCAG 1.0 foi criticada por ser muito técnica e não acompanhar as mudanças rápidas da tecnologia, especialmente o surgimento de interfaces dinâmicas e multimodais.
Em resposta a essas limitações, a WCAG 2.0 foi lançada em 2008, marcando um avanço significativo em flexibilidade e aplicabilidade. Ela introduziu os princípios fundamentais de acessibilidade que hoje são conhecidos como POUR — sigla que, traduzido ao português, significa Perceptível, Operável, Compreensível e Robusto. A WCAG 2.0 também foi projetada para ser tecnologicamente neutra, o que permitiu sua aplicação em dispositivos e plataformas além de websites, como aplicativos móveis. Essa versão consolidou as bases da acessibilidade digital moderna, sendo essa a versão amplamente adotada em legislações globais — como será visto posteriormente.
Com o tempo, surgiram novos desafios e a necessidade de abordar casos específicos que não eram totalmente cobertos pela WCAG 2.0. Isso levou à publicação da WCAG 2.1 em 2018, que introduziu mais critérios voltados para acessibilidade móvel, além da inclusão de diretrizes para pessoas com deficiências cognitivas. Novos requisitos — como o suporte a gestos de toque, orientação de dispositivos e interfaces responsivas — refletem a evolução do uso da web em dispositivos móveis. A WCAG 2.1 também reforçou critérios para usuários com baixa visão, como contraste adicional para elementos não textuais.
Recentemente, em dezembro de 2024, foi publicada a WCAG 2.2, focando em refinamentos e ampliando o escopo para lidar com questões específicas que ainda persistem. Essa nova versão introduz critérios adicionais sobre estados de foco em componentes, projetado para beneficiar usuários que navegam com teclado, e ajustes para minimizar distrações, essenciais para pessoas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e outras deficiências cognitivas. Além disso, a WCAG 2.2 se alinha com a crescente expectativa de que os produtos digitais ofereçam experiências mais inclusivas para um público diversificado.
Níveis de conformidade da WCAG e solicitação legal
Apesar de se entender que a WCAG 2.0 é a base de referência para a maior parte das exigências legais atuais, é fundamental entender também que as guidelines são organizadas em três níveis de conformidade (A, AA e AAA), indo do mais básico ao mais complexo. Esses níveis são projetados para oferecer diretrizes que variam em complexidade e abrangência, permitindo que desenvolvedores e organizações adaptem suas práticas de acordo com necessidades específicas. Não menos importante, esses níveis também são utilizados como exigências legais em alguns países.
O Nível A representa o mínimo aceitável de acessibilidade. Ele aborda barreiras críticas que impedem completamente o acesso de alguns usuários. Por exemplo, garante que conteúdos possam ser navegados via teclado, que imagens tenham texto alternativo e que vídeos contenham legendas básicas. Esse nível é essencial para garantir que tecnologias assistivas possam interpretar e apresentar o conteúdo de forma funcional, mas ele não garante uma experiência ideal para todos os usuários.
O Nível AA é o mais amplamente adotado e exigido em legislações globais. Esse nível adiciona critérios que melhoram a experiência para um público mais amplo, como contraste adequado entre texto e fundo, navegação lógica e responsividade em dispositivos móveis. O Nível AA é considerado o padrão ideal para equilibrar acessibilidade e esforço de implementação, garantindo que o conteúdo seja acessível para a maioria das pessoas com deficiência.
O Nível AAA é o mais avançado e visa eliminar praticamente todas as barreiras para todos os usuários, incluindo pessoas com deficiências severas. Ele exige, por exemplo, opções para ajustar o espaçamento de texto, limite mais alto de contraste de cores e descrições detalhadas para todos os elementos multimídia. Embora o Nível AAA seja altamente inclusivo, é também o mais difícil de implementar universalmente, pois algumas diretrizes podem não ser aplicáveis a todos os tipos de conteúdo. São raras as recomendações legais que exploram a necessidade de ir até o nível AAA de conformidade, porém, trata-se do nível mais indicado por especialistas pela quantidade de situações englobadas.
Com essa contextualização básica, podemos seguir às próximas seções e explorar algumas das leis que tem sido referências para construção desse cenário de exigências por conformidade legal em relação à acessibilidade digital.
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI)
[ A imagem acima descreve uma mulher cadeirante sorrindo na frente de um laptop. Fotografia de Marcus Aurelius, 2020. ]
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, foi sancionada pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Este marco legal estabelece princípios, diretrizes e medidas para assegurar os direitos das pessoas com deficiência em diversos âmbitos da sociedade, incluindo o acesso à tecnologia e ao ambiente digital.
No artigo terceiro, a LBI define acessibilidade como:
“possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.”
Esse conceito reforça a necessidade de incluir o ambiente digital como um aspecto fundamental da acessibilidade, considerando que a tecnologia é um meio essencial para a participação plena em diversas atividades, como educação, trabalho, lazer e cidadania. O artigo 63 é o que torna obrigatória a acessibilidade em produtos digitais mantidos por empresas com sede ou representação comercial no país ou por órgãos de governo, garantindo às pessoas com deficiência acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente.
Considerando que a publicação da lei ocorreu em 2015, há quase uma década, percebe-se que ela ainda não apresenta detalhamentos robustos sobre suas exigências legais, deixando em aberto, como mencionado anteriormente, quais práticas e diretrizes devem ser seguidas. No contexto brasileiro, é razoável interpretar que as “melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente” referem-se às WCAG 2.0. Além disso, subentende-se que é recomendável observar também as exigências implementadas por outros países, especialmente no que diz respeito às versões mais recentes das guidelines e aos níveis de conformidade exigidos.
Diante disso, a seguir, será apresentado um resumo sintético de outros contextos internacionais para compreender como eles podem influenciar e impactar o cenário brasileiro.
Americans with Disabilities Act (ADA) e a Lei de Reabilitação (Section 508)
No contexto norte-americano, os Estados Unidos possuem dois marcos legais que auxiliam nas exigências legais de acessibilidade em produtos digitais: o Americans with Disabilities Act (ADA) e a Seção 508 da Lei de Reabilitação (Rehabilitation Act).
O ADA, promulgado em 1990, é uma das legislações mais abrangentes e significativas dos Estados Unidos voltada para proteger os direitos das pessoas com deficiência. Inspirado pela Lei de Reabilitação de 1973, o ADA focava em remover barreiras físicas, como a implementação de rampas, elevadores e sinalização acessível em espaços públicos. No entanto, com o crescimento exponencial da internet e das tecnologias digitais, o Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) esclareceu, em 1996, que websites também são considerados “acomodações públicas” sob o Título III do ADA. Isso significa que administradores de sites têm a obrigação legal de garantir que suas plataformas sejam acessíveis a indivíduos com deficiência, assim como são exigidos requisitos de acessibilidade em espaços físicos.
O Título III do ADA, que regula o acesso igualitário a bens e serviços oferecidos por empresas privadas, tem sido interpretado por tribunais e advogados como aplicável ao ambiente digital. Por exemplo, um site de e-commerce ou um aplicativo bancário deve ser tão acessível quanto uma loja física ou uma agência bancária. Isso significa que empresas que oferecem serviços digitais têm a obrigação de garantir que seus produtos estejam em conformidade com padrões de acessibilidade.
Ainda, assim como a Lei de Inclusão brasileira, o ADA não é tão específico em suas solicitações de conformidade. Por isso, existe a Seção 508 da Lei de Reabilitação dos Estados Unidos que foi publicada inicialmente em 1973 e foi revisada em 1998. Ela exige que todas as tecnologias eletrônicas e de informação desenvolvidas, adquiridas, mantidas ou usadas por agências federais dos EUA sejam acessíveis a indivíduos com deficiência. Isso inclui sites, aplicativos, documentos digitais, hardware e software, assegurando que esses recursos estejam disponíveis de forma equitativa para todos os cidadãos.
Historicamente, a Section 508 nasceu como uma resposta à crescente dependência de tecnologias digitais em serviços governamentais e públicos durante as décadas de 1980 e 1990. Antes de sua revisão em 1998, a acessibilidade tecnológica não era amplamente regulamentada, resultando em barreiras significativas para pessoas com deficiência. A atualização de 1998 foi um marco, trazendo as primeiras exigências específicas para a acessibilidade digital e integrando a tecnologia ao conceito mais amplo de inclusão garantido pela Lei de Reabilitação.
Um dos aspectos mais significativos da Section 508 é a sua ligação com o WCAG, que atualmente serve como referência técnica para avaliar a conformidade. Com a adoção do WCAG 2.0 e, mais recentemente, a consideração de critérios do WCAG 2.1, a Section 508 exige que organizações garantam aspectos fundamentais da acessibilidade. Além disso, é importante mencionar que a norma solicita a conformidade com os níveis A e AA da WCAG 2.1, indo além das exigências básicas documentadas nas diretrizes.
Apesar da Section 508 ser restrita ao universo dos produtos digitais governamentais, a ADA, como seu complemento, tem se baseado nesses níveis de exigência descritos pela Lei de Reabilitação em casos de produtos de organizações privadas.
European Accessibility Act (EAA)
O panorama da acessibilidade está prestes a mudar na Europa com a implementação do European Accessibility Act (EAA), programado para entrar em vigor em junho de 2025. Diferentemente de legislações específicas de outros países (como o Reino Unido que possui o Equality Act de 2010), o EAA adota uma abordagem mais técnica e focada, aplicando-se a setores específicos, como bancos, e-commerce, transporte e telecomunicações, e exigindo conformidade com padrões claros de acessibilidade, como os descritos no WCAG. Isso representa um avanço significativo, especialmente para o mercado digital, ao estabelecer expectativas objetivas para empresas que operam nesses setores.
O EAA também introduz um elemento de harmonização em toda a União Europeia, facilitando a conformidade para empresas que operam em múltiplos países europeus, ao mesmo tempo que estabelece sanções mais claras para quem não atender às exigências. Embora o Reino Unido, após o Brexit, não esteja diretamente sujeito ao EAA, muitas empresas britânicas que operam no mercado europeu precisarão se adequar às novas regras para continuar oferecendo seus serviços. Assim, o EAA se posiciona como uma legislação que preencherá lacunas deixadas pelo Equality Act, incentivando maior rigor e clareza na acessibilidade digital.
Este ato foi mencionado como um avanço importante para harmonizar os padrões de acessibilidade em toda a União Europeia. Entrando em vigor em 2025, o EAA se aplica a setores como bancos, e-commerce, transporte e telecomunicações. Ele exige que produtos digitais, como aplicativos e websites, sejam acessíveis e estejam em conformidade com padrões técnicos, como o WCAG. Assim com a Seção 508 dos Estados Unidos, o EAA solicitará conformidade com a WCAG 2.1, nível A e AA, como referência principal para os requisitos de acessibilidade digital.
Canadian Accessibility Laws
O Canadá demonstra um forte compromisso com a acessibilidade, adotando legislações que abrangem tanto o ambiente físico quanto o digital. As duas principais leis que orientam as exigências de acessibilidade no país são o Accessible Canada Act (ACA), de abrangência federal, e o Accessibility for Ontarians with Disabilities Act (AODA), que estabelece padrões progressivos para a província de Ontário. Ambas têm como objetivo remover barreiras para pessoas com deficiência, promovendo inclusão em diversas áreas da sociedade.
O Accessible Canada Act (ACA), promulgado em 2019, estabelece a meta de tornar o Canadá acessível até 2040. Ele exige que organizações regulamentadas em âmbito federal, como órgãos governamentais, bancos e transportadoras interprovinciais, desenvolvam planos de acessibilidade detalhados e revisem regularmente suas práticas, em conformidade com as WCAG 2.1, Nível AA. Essas diretrizes abrangem requisitos como acessibilidade por teclado, textos alternativos para imagens, contraste adequado de cores e compatibilidade com leitores de tela. O ACA reforça ainda a importância de consultas regulares com pessoas com deficiência para alinhar as práticas às suas necessidades.
Já o Accessibility for Ontarians with Disabilities Act (AODA), introduzido em 2005, tem como meta tornar Ontário acessível até 2025. Ele se destaca por exigir a conformidade com o WCAG 2.0, Nível AA, em prazos estabelecidos, aplicando essas normas tanto a organizações públicas quanto privadas, independentemente do porte. O AODA é rigoroso na fiscalização, impondo multas a organizações que não atendam aos requisitos e promovendo auditorias frequentes para garantir a conformidade.
Conclusões
As exigências legais relacionadas à acessibilidade digital, tanto no Brasil quanto no exterior, evidenciam uma transformação profunda no panorama jurídico e tecnológico. Mais do que um compromisso ético, a acessibilidade tornou-se uma obrigação legal que afeta diretamente a maneira como empresas desenvolvem seus produtos e serviços digitais. O artigo mostrou que legislações como o ADA, o EAA e o Accessible Canada Act, entre outras, estão se tornando referências globais e pressionando organizações a adotarem padrões como o WCAG 2.1, em níveis A e AA, para garantir conformidade e evitar penalidades legais.
Essa evolução destaca a urgência de empresas estruturarem ações proativas para atender a essas demandas, não apenas para cumprir a lei, mas para oferecer experiências inclusivas que beneficiem todos os usuários. O alinhamento com os padrões globais de acessibilidade não é apenas uma proteção contra riscos jurídicos, mas também um diferencial competitivo que posiciona as organizações como líderes em inclusão e inovação digital. O futuro exige conformidade, mas também convida as empresas a contribuírem para um ambiente digital mais justo e acessível para todos.